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Alentejo, Dezembro 2023

Estou de cachecol dentro de casa, e a beber chá enquanto dedilho. Faz escuro na hora do lanche, a casa acolhe qualquer hora. Chegamos numa quarta-feira sem pressas, a casa ainda cheira a limpa-móveis, comemos produtos daqui e deixamos o frio guiar o destino. Sento-me à mesa a fingir que trabalho, vejo o Senhor J. lá ao fundo a trabalhar na noite fria, deixo-me levar pelo destino que criámos. Durmo profundamente, sonho com coisas más, acordo ao lado do calor e num estremunho levanto-me para o café despertador. Levo o sono pela manhã, numa raridade anual, durmo acordada e o destino acorda-me de novo: vou lá fora, colho laranjas, apanho romãs, levo ovos das galinhas, reviro o composto, faço sopa, cozo marmelos, tosto avelãs. Mexo o corpo, acordo finalmente, não me deixo levar pela preguiça e a memória muscular vence a batalha. Dançamos de hora a hora, o T. tira-me a seriedade, eu dou-lhe a estabilidade, a casa oferece-nos espaço. Passamos a tarde como turistas numa Estremoz solitária pela...

Alentejo, Outubro 2023

  O Outono começa aqui, numa noite escura, com o frio a entrar devagarinho, com o vento a sussurrar de mansinho, com as árvores a despedirem-se lentamente das folhas. Chegamos no fim de um dia citadino, paramos para jantar e somos todas tagarelas por uma noite. Aqui o Outono começa dentro de nós, e nos dias de chuva lá fora, esta casa conforta-nos, ora pela luz, ora pela madeira, ora pelo tilintar do espanta espíritos que se ouve pelo dia fora. E passamos o dia fora assim que este abre. Eu e a m. caminhamos até aos cromeleques, imaginamos a vida à sete mil anos e pensamos no impensável. Juntamos-nos à T. e à A. para um final de noite e regressamos onde queremos sempre estar. O Senhor J. ensina-me a colher azeitonas, a plantar couves, convida-me a sentir o esforço, a dar valor à segunda parte da palavra agricultura. Oiço e pergunto e esqueço-me da idade, e aprendo com os músculos. E depois fico ao lado da m. enquanto faz sopa e me faz pensar em tudo o que dela sou. A T. tem a cabeça...

Alentejo, Setembro 2023

  14 de Setembro, Alentejo O verão passa a correr, não é o que se diz? Passa, mas não corre, é brisa em vez de vento. Volto sempre aqui (voltamos). Bebemos café quase eternamente, mergulhamos incessantemente, moramos entre a conversa e o silêncio e quando digo moramos é porque fazemos daqui casa. Afinal de contas é mesmo possível. O Setembro vai a meio, esse mês marcado pela festa de um dia sem ela, um dia em que os resquícios da adolescência dolorosa se fazem sentir como camadas de angustia. A cada ano uma camada cai, depois outra e mais outra. Colada à T., perto da T., longe da T., próxima da T., sempre com ela. Percorremos treze quilómetros como quem sai para ir comprar pão, e pão compramos de facto. Vamos ao rio, onde está a frescura dos anos que sofri nele? Regressamos em silêncio, ouvimos o movimento a falar, não sinto o meu corpo por um breve instante, subo para um mundo paralelo e regresso com os pés no chão. Ponho velas, um vestido, pinto os lábios, festejo o dia como semp...

Alentejo, Agosto 2023

26 de Agosto de 2023 A estranheza de conhecer alguém é desmanchada com a idade, o receio do outros nos verem como não somos dissipa-se na certeza de que somos quem somos e mesmo que no silêncio se sinta desconforto, a razão já não é a mesma. Eu e a m. paramos em capelinhas na capital antes de nos fazermos à estrada e apanhamos C. pelo caminho. A conversa flui numa língua que não é de nenhum de nós, uns gaguejam mais pela falta de hábito, outros confirmam o hábito de se expressar universalmente. O dia vai a meio, no meio do calor, no meio do verão, no meio da descoberta lá vamos ao encontro da casa que se faz sua de quem a pisa. A cor é laranja, apesar da casa ser azul e branca mas é a cor da sua luz que me fica na memória da retina. Pulamos para a água, como não? Flutuamos, perguntamos, ouvimos. Eu e C. jantamos juntes, nas cadeiras cromadas, e conversamos sobre o campo e a cidade, sobre como o silêncio nos traz vida. À noite passeamos em volta, durante o dia comemos figos, abrunhos, m...

Alentejo, Agosto 2023

11 de Agosto de 2023 O dedilhado do computador acompanha-me, mas agora são as mãos do T. que se ouvem bem perto. Está calor lá fora, a aragem não é suficiente. As vespas andam de roda, os gatos miam cheios de fome no crepúsculo da noite contínua, o tempo das coisas sopra ao nosso ouvido: descansa, a vida ainda continua. Viemos de quatro rodas, não fugimos, antes abraçamos a sensação de um verão quente e calmo, só possível no paraíso desta sorte. Conduzo pela estrada fora, sorrio à possibilidade da alegria capaz de durar, dou a mão ao T. e sonho com exactamente aquilo que sinto. Chegamos como se chegássemos a casa: a chávena da flor da selva onde o T. bebe o café, o Senhor J. que nos entrega figos acabadinhos de colher, as galinhas a passearem-se pelos recantos, o espaço feito pela mãe mas gozado por todos, a mesa de madeira maciça onde me sento a costurar, a ler, a escrever, a contemplar. Vemos filmes, dormimos sestas, mergulhamos na água, rimos como crianças que o fazem sem motivo, n...

Mafra, Agosto 2023

3 de Agosto de 2023 Na semana da Jornada de Juventude, aterradas com a possibilidade de magotes, viemos uma semana para Mafra. A saída da capital foi atribulada mas na tarde de dia 1 já estávamos onde queríamos estar: longe de Lisboa. Quando estacionámos em frente à casa, que os amigos J. tão gentilmente nos cederam, a primeira coisa em que a L. reparou foi no silêncio e esse silêncio acompanhou-nos pelos dias fora. De facto a vida da cidade é barulhenta, mas um barulho quase intrínseco que só se nota quando não se está por baixo dele. O sítio é me familiar, por isso a diferença não tão acentuada, mas estar com um vale verde à frente do nariz só pode, sem sombra para dúvidas, acalmar a cabeça. O primeiro dia foi leve, passou rápido. Comemos bem e jogámos jogos de tabuleiro, numa infância que se revela com o excitamento de algo novo, com a partilha de algo sem destino, com o viver o momento como se o amanhã não existisse. A L. e C. dedilham nos seus computadores, concentradas em não per...